sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O fenômeno da manipulação de imagens


Por Lucas Bambozzi

Práticas multisensoriais de processamento de imagens ao vivo pervertem noções de áudio, vídeo, mídia e arte

Refletir sobre as mídias tem levado naturalmente ao pensamento em torno das novas tecnologias. Mas o inverso tem se mostrado verdadeiro também. As tecnologias estão hoje a serviço das mídias (e não é exagerado pensar que as políticas, a religião e a guerra também travam seu combate mais prioritário, sua “propaganda” e ideologia no campo das mídias). As mídias exercem essa promiscuidade inconfundível com a técnica vigente, seja com a alta ou com a baixa tecnologia1.

E há projetos que forçam essas barreiras de modo bem interessante. O conceito de “Generative Art”, por exemplo, coloca em xeque não apenas o autor mas a própria audiência. Trabalhos que se “regeneram” e adquirem complexidade independentemente dos “inputs” (“self-generating”), apesar de não serem uma absoluta novidade no campo da arte, continuam a incomodar críticos e curadores ansiosos por alguma estabilização de conceitos ligados às tecnologias da imagem. Os conceitos envolvidos neste caso se alastram de tal forma que se tornam inviáveis nesse artigo. São resultados de aspectos de uma revolução digital que se move bem abaixo da superfície do grande cinema e mesmo das artes visuais.

As experiências com manipulação de imagens anteriores ao contexto atual (sejam aquelas aqui mencionadas ou esquecidas) encontram cada vez mais no aparato digital a ferramenta perfeita para o exercício radical das possibilidades de duplicação, reprodução e sampleagem.

Como imagem entende-se também dados digitais, códigos e informações numéricas, que podem adquirir inúmeras e novas formas de representação (não apenas visuais). Mas não são essas definições que configuram a superfície mais aparente do contexto de produção e veiculação de imagens. A suposta novidade se constitui pela confluência dos procedimentos digitais com os fenômenos que envolvem a cultura da música eletrônica.

Uma nova noção de “participação” renasce nesse ambiente reforçado pelo êxtase, pelo contato coletivo, pelo transe proporcionado pela música. Já a idéia de autoria, permanece no incógnito terreno do relativismo. Por um lado, há grupos que produzem bancos de imagens para uso por parte de outros VJ’s. Num mundo que permite a reprodução infinita, faz sentido que as imagens não tenham dono. Por outro lado, nesse terreno devassado, é a afirmação pontual de estéticas pessoais que gera algum diferencial.

É principalmente a partir de intersecções desse tipo que as mídias se expandem -e “se” resultam impuras, sedutoras, instigantes. No loop da história, voltamos mais uma vez ao conceito de cinema expandido de Gene Youngblood (1970).

A euforia em torno das facilidades de manipulação de imagens se mostra assim mais fácil de ser contextualizada2. Complicado é aceitar o quão difícil é ser original nesse contexto. Ao olharmos para trás, sempre haverá um parentesco mais ou menos próximo com várias das referências colocadas pela turbulenta história das mídias.

Grosso modo, alguns (como os VJs Palumbo, Spetto e Jodele) se inclinariam mais para o lado de um Nam June Paik; vários grupos (Bijari, FAQ, Alexis, Visual Farm) poderiam ser referenciados a partir dos scratch-videos “a la Gorilla Tape”, incluindo o direcionamento político que orientou essa vertente iniciada nos anos 80.

Outros encontram como modelo estético as interferências do cinema direto de Stan Brakhage ou o cinema do cronista do underground Jonas Mekas (como o coletivo Embolex e a dupla MM não é confete).

Outros, como Luiz Duva e FAQ, transpuseram conceitos e procedimentos da videoarte para esta nova arena e muitos (principalmente os VJ’s lá de fora) se dão conta de que tudo o que precisam já está disponível na internet ou em bancos comercias de imagens. Como sempre, as ferramentas utilizadas são peças decisivas para se definir uma referência direta (consciente ou não) com experiências e estéticas anteriores.

O fato é que o trabalho dos VJ’s, ao mesmo tempo que ganhou uma “over-exposição” na mídia, estimulou a propagação de uma forma de cinema sem dramaticidade narrativa, pouco conteúdo e conceitos diluídos. Há quem questione o propósito de tanta manipulação (um mero exercício de sobreposições e cortes) assim como há quem considere essas experiências uma espécie de “papel de parede de festas”, onde predomina a associação aleatória de sentido entre gráficos e imagens.

Mas o que se promete é que o processamento de vídeo em tempo real teria supostamente a capacidade de potencializar as experiências anteriores, sejam elas do cinema de vanguarda ou da videoarte, num nível sensorial nunca visto.

É inegável que as tecnologias abriram formas realmente novas de manipulação e de formulação de uma narrativa mais permeável às instabilidades do acontecimento ao vivo. E essas experiências vêm ganhando muito com os sistemas interativos.

A precisão de sincronismo dos eventos virtuais com as ações da cena real pode ser realmente absoluta. Softwares, como o Keyworx, Isadora, Image/ine ou o pacote Max/MSP-Jitter normalmente associados ao sincronismo eletrônico-musical em palcos e performances cênicas, vêm cada vez mais sendo utilizados nesse tipo de performance com vídeo. A maioria dispõe de recursos de input via Midi3, detectando o beat da música e garantindo a experiência sensorial nas mesmas batidas por minuto (BPM).

Se marcações sonoras podem gerar automaticamente pulsos visuais, ou se o próprio público pode desencadear acontecimentos no plano da imagem e do som, agora o "performer" pode se dedicar a uma espécie de regência geral dos vários instrumentos que compõem essa orquestração.

Além disso, a concepção do sistema em si torna-se cada vez mais um desenho complexo de interfaces, conceitos estéticos e gerenciamento de mídias. E isso não é pouco.


Interface e interação

Ao longo dos anos 90, a função cultural do computador foi mudando. Antes uma ferramenta, agora um meio: um veículo de informações. Já não nos damos conta de que há cerca de dez anos o computador ainda era pensado como a simulação de uma máquina de escrever, um quadro de desenhos, uma prancheta de arquitetura ou design.

No fundo, estamos interagindo não apenas com uma máquina, mas com formas culturais codificadas digitalmente. Tais interfaces consistem basicamente em metáforas utilizadas para contextualizar e organizar os dados no computador, seja na forma de ícones, hipertexto, metonímias ou outras formas de associação. É a interface que sugere interatividade -pela intuição, pelo reconhecimento cognitivo, por aproximação.

Pois as interfaces existentes ainda são pobres. Interações via teclas “datilográficas” ou cliques em mouses constituem pontos de contato muito limitados entre homem e computador.

Uma relação como essa sugere que os milhões de anos gastos na evolução perceptiva sejam desprezados e que nossas facilidades com a linguagem expressiva sejam ignoradas. O desenvolvimento das interfaces deveria levar em conta o poder da linguagem, incluindo aí as conexões poéticas, os valores culturais e a subjetividade.

A interatividade que de fato interessa é quase sempre resultado de um processo físico, sensorial e/ou gestual. Sistemas em que o próprio computador ativa mecanismos situados em ambientes e espaços físicos remotos são cada vez mais comuns no dia-a-dia (um exemplo imediato são os medidores de velocidade que gerenciam câmeras fotográficas e ativam o envio de multas). Mas como quase todo hardware, estes são produzidos para alguma indústria, quase nunca para a produção de arte.

As perspectivas imagináveis para uma situação envolvendo imagens e público podem potencializar experiências multisensoriais. Voltamos aos aspectos que revelam a novidade das performances envolvendo “live-images”. Grupos, como o feitoamãos/FAQ, estão cada vez mais interessados em situações em que todos os sentidos são mobillizados.

Essa participação coletiva, o potencial das tecnologias interativas e a experimentação com a interface, possibilitam questionar as relações entre os sentidos e distribuir os papéis (entre emissor/receptor, entre espectador passivo e ativo) novamente. O predomínio do olho na organização do mundo visível, apenas um exemplo, pode vir a ser radicalmente questionado. Outras formas de contato, outras sensibilidades tendem a ser estandardizadas.

Experiências envolvendo vibrações sub-sônicas, superfícies hapticas (como o trabalho “Haptic Wall”, de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat, apresentado no Sonar Sound), bem como odores, informações subliminares (algumas perversas, como determinados anúncios invasivos, cada vez mais presentes em festas e clubes noturnos) vêm explorando conexões e formas complementares de potencialização de nosso aparelho sensorial.

Enquanto isso há algo que se apresenta como paradoxal: as novas interfaces que vislumbramos pela frente viabilizam manipulações tipicamente analógicas. Uma invenção considerada genial, como o “Final Scratch”4, carrega um sentido de anacronismo muito grande. Por mais que todos procurem formas de interatividade para fora do computador (o termo “out-of-the-box” é outra denominação impregnada de uma tendência generalizada) é curioso observar que o VJ hoje queira adotar técnicas associadas a uma pickup.

Passeando por apresentações de “live-images”, por listas de discussão ou por sites de referência à cultura dos “audiovisualizers” (“visualizadores de áudio”), como Vjcentral, Audiovisualizers, Vjing, VJBR), vemos crescer o que pode ser chamado de interfaces de simulação, algo observável tanto nas interfaces físicas como nas interfaces gráficas (graphics user interfaces - GUI).

Como mencionado anteriormente, essas referências são notadamente culturais e por isso mesmo baseiam-se sobretudo na apropriação de técnicas pré-existentes. Esse fenômeno se caracteriza menos pelo desafio de se buscar novas linguagens a partir de novas tecnologias do que pelo emprego de novas técnicas para a reprodução de procedimentos analógicos, de um contexto pré-digital.

Isso talvez reflita a tese de que qualquer tecnologia, seja ela sofisticada ou não, sempre emprega qualidades anacrônicas, baseadas em mídias anteriores. Não sem razão, Lev Manovich (1998) justifica que computadores são máquinas de simulação e nada mais natural que eles simulem outras mídias, mais antigas ou não.


Imagens como música

Na busca por uma análise mais consensual, arrisco afirmar que sempre houve um ideal de se produzir imagens como se opera num instrumento de música. Na esteira do “Final Scratch”, as experiências mais atuais de manipulação privilegiam processos típicos daqueles ligados à música.

VJ Spetto, por exemplo, vem buscando formas de substituir o teclado do computador por instrumentos musicais (a partir de interfaces comandadas por sinais midi, um recurso que permite entre outras coisas, “expandir” os controles dos softwares para fora do computador). É cada vez mais essencial que se possa “tocar” as imagens, afastando-se um pouco do referencial do computador e do anacrônico teclado “qwert” (que pouco tem a ver com música ou imagem).

Os próprios softwares de manipulação de vídeo tomam emprestado do universo do áudio não apenas suas interfaces e sua lógica intrínseca como em muitos casos são os mesmos (Image/ine, Arkaos, Max/MSP -antes associado a Nato ou Jitter e agora autônomo).

Outros mais notadamente orientados a efeitos visuais e com grandes possibilidades de customização se proliferam aos montes (Isadora, Grid2, Resolume, KeyWorx, Gephex -estes dois últimos ainda livres!). Em instalações onde a programação deve ser mais detalhada, o uso do velho Director (Macromedia) vem ganhando novas perspectivas com o uso de Xtras como XMidi e SequenceXtra.

As possibilidades são inúmeras, dependendo da plataforma e do que realmente se espera a partir da manipulação. Mas, curiosamente, um ícone desse universo ainda é o Theremin5, que lê sinais provocados pela aproximação da mão ou do corpo.

O que interessa nessas experiências? Por que tanto se persegue o sentido do “manipular”? E o que a arte a ver com isso?

As mídias baseadas no digital viabilizam pirotecnias, mas, de certa forma, também constrangem. Apesar de todos os avanços, espera-se um contato mais orgânico, mais tátil com a imagem. E, quando travestido de arte, o digital anseia por se libertar de sua condição. Trata-se de uma síndrome da arte das mídias. Ela tende a se rebelar contra si mesma, contra sua função midiática, meramente comunicacional.

É sempre bom lembrar que o vídeo nasceu ao vivo. O registro veio depois, principalmente como forma de eliminação de gafes da TV ao vivo. E hoje a “imperfeição” (o improviso), são elementos viabilizadores de adrenalina, que supostamente injetam “vida” nos sistemas automatizados.

1 - Esse artigo é uma atualização e uma revisão de um texto publicado em 2003 em “Redes Sensoriais: Arte, Ciência, Tecnologia”, organizado por Katia Maciel e Andre Parente (Rio de Janeiro: Contra Capa ). Ele dá continuidade ao ensaio “A era do ready made digital”, publicado nesta revista e acessível no “link-se”, no final.


2 - Acredito também que a união entre DJ's e Vj's entrou em evidência na agenda dos festivais no mundo todo por um motivo simples: percebeu-se que essas "festas" tinham o poder de “quintuplicar” o público visitante em um festival de arte eletrônica. Ao final do evento, ao somar o público visitante nas mostras com o público das festas, o resultado era a alegria que faltava aos patrocinadores.


3 - MIDI (Musical Instrument Digital Interface) é um protocolo para gravação e reprodução de músicas em sintetizadores digitais aceito por uma grande diversidade dde placas de som de computador digital.


4 - O Final Scratch é um aparelho fabricado pela Stanton que faz com que as músicas disponíveis em um computador sejam tocadas como se estivessem num vinil (o sistema vem com um par de vinis especiais, que armazena códigos e roda em Linux), permitindo assim a mudança de rotação, o scratch, avançar para frente para trás e outras manipulações com a mão já conhecidas entre os DJ’s. Trata-se essencialmente de uma interface analógico-digital, havendo similares para interação não apenas para música mas também para imagens.


5 - Instrumento criado em 1919 por Leon Theremin (Lev Thermen).

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