sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Os VJs e as imagens ao vivo, inacabadas, imersivas: o corpo em partilha com a obra


Christine Mello
Os trabalhos das performances de live images, ou imagens ao vivo, ou vídeo ao vivo, produzidos na contemporaneidade no âmbito da cena eletrônica dos DJs e VJs, integram um conjunto de práticas artísticas menos preocupadas com “uma visão formalizadora da linguagem” (Santaella, 2003: 147) e mais preocupadas com uma visão orgânica da linguagem. De um modo geral, este tipo de visão orgânica encontrada nestes trabalhos permite a inserção do vídeo como elemento de indeterminação e acaso. Estas circunstâncias aproximam o vídeo das colagens dadaístas e o reconfiguram na atualidade em torno a uma corrente desconstrutiva relacionada à vertente experimental no campo da arte.
Os trabalhos constituídos nos ambientes sensórios do vídeo ao vivo são como videoinstalações reconfiguradas, trazidas à luz pelo espírito da arte/vida. Dizem respeito à questão do rompimento da hegemonia do gesto contemplativo na arte, ou à hegemonia da visão como a única fonte de apreensão perceptiva. Estes trabalhos incluem múltiplos pontos de vista e inserem o corpo como um todo, imerso no ambiente, em estado de deslocamento, no contexto de significação do trabalho.
As performances de vídeo ao vivo compreendem um momento da arte de supressão do olho como único canal de apreensão sensória para a imagem em movimento. Neste processo, reinsere-se novamente de modo radical a idéia de experimentação, dos procedimentos imersivos e do ato artístico como abandono do objeto.
Christine Mello é curadora independente e professora da PUC/SP-Tecnologia e Mídias Digitais, da FAAP-Artes Plásticas e do Senac. Desenvolve pesquisa no campo da arte e das mediações tecnológicas. Doutora em Comunicação e Semiótica na PUC/SP, possui estudos sobre o vídeo no Brasil.
Christine Mello
2004

1.Origens da vertente experimental e da idéia de inacabamento no vídeo ao vivo

A corrente desconstrutiva encontrada nos trabalhos de vídeo ao vivo da atualidade é uma vertente experimental da arte que tem origem no “conceito de experimentação científica como método de pesquisa que parte da anulação dos postulados da sabedoria tradicional e autoritária instalada como dogma ou crença que dirige a conduta científica, predeterminando suas conclusões” (Menezes, 2001: 196). Para Philadelpho Menezes, a vertente experimental é acompanhada do desejo de dissolução das fronteiras do objeto artístico em que “a própria concepção de fusão da arte com a vida aponta para a dissolução das esferas estéticas nas atividades cotidianas”. (Menezes, 2001: 200)

É possível observar que para Julio Plaza e Mônica Tavares o método experimental opera com “o conhecimento transmitido pelos sentidos” (Plaza e Tavares, 1998: 103). Para eles, o que define a prática experimental diz respeito à não existir plano artístico nem projeto pré-concebido. Eles afirmam que:
“O produto é realização direta, concomitante à criação. A criação leva à descoberta. Opera-se ludicamente com os meios. É um processo que vai da prática à teoria. [...] A intenção deste método não está na obra acabada, mas sim no ato de fazer” (Plaza e Tavares, 1998: 103)
Há também a perspectiva analítica de Sheila Cabo em perceber que o que move os artistas na atitude experimental diz respeito “à vivência como condição inerente a uma nova proposição que desejam aberta ao inesperado. A desconstrução da integridade da obra como negação de si mesma” (Cabo, 2001: 104). Para ela, surge dessa maneira, o modo de operar de forma desconstruída, não objetivando, para tanto, a produção de “obras de arte”, mas principalmente intervir na cadeia ou circuito da arte, abrindo espaço para o imprevisto e acaso.

Para Cecília Almeida Salles, as relações existentes entre construção-desconstrução do objeto artístico dizem respeito ao fato do artista lidar com sua obra em estado de permanente inacabamento. Esta forma de visão desenvolvida por ela diz respeito aos estudos da Crítica Genética26. Este tipo de crítica implica a substituição da análise do produto (ou obra acabada) pela análise do processo (ou obra inacabada).
Para Salles, o “inacabado tem um valor dinâmico, na medida em que gera esse processo aproximativo na construção de uma obra específica e gera outras obras em uma cadeia infinita” (Salles, 1998: 78) Nesta direção, tomando a continuidade do processo e a imcompletude que lhe é inerente, Cecília Salles defende que mesmo o objeto tido como “acabado”, ele pertence a um processo de inacabado e que todo projeto criativo se revela sempre em movimento.
Em poéticas de cunho experimental como as do vídeo ao vivo cuja vivência do processo artístico é parte fundamental da constituição sígnica, a inserção da visão acerca do inacabado possibilita, de certa forma, uma visão plural calcada na multiplicidade de gestos e ações artísticas.
Na lógica desconstrutiva, o caráter da obra em seu inacabamernto e em seu estágio latente de processo oferece uma perspectiva de reversão de valores no sistema da arte, na medida que firma a obra em seu valor de experiência e vivência, e não necessariamente em seu valor de produto ou mercadoria. A seguir, são encaminhadas algumas abordagens acerca de processos desconstrutivos - apreendidos da realidade por meio de experiências sensórias não-convencionais - na esfera do vídeo ao vivo.
2. A desconstrução nas performances de vídeo ao vivo
As proposições imagéticas editadas em tempo real27 são como novas estratégias discursivas a que recorrem os criadores em torno de modalidades performáticas de apresentação do vídeo, já que é a partir de características relacionadas ao ato presente, à ordem do acontecimento, ao ambiente imersivo e à ação coletiva que residem essas manifestações artísticas.

Nas manifestações do vídeo ao vivo há uma visão mais contemporânea do vídeo por meio da idéia de desconstrução do sistema tradicional de produção e de circulação do contexto audiovisual. Neste processo, há a desmontagem de valores sígnicos tanto relacionados à partilha do corpo com o ato artístico e à superfície da tela quanto à idéia de produto acabado.
No contexto desconstrutivo das imagens ao vivo é possível observar três tipos, ao menos, de rupturas: em um primeiro momento as circunstâncias do vídeo ao vivo dizem respeito à saída do plano-tela para o espaço ambiental. Isto implica no fato que a visão deixa de ser o canal hegemônico sensório e o corpo imerso no trabalho passar a se configurar como um todo definidor da obra; em um segundo momento há a ruptura do status da tela em sua constituição simbólica na medida que seus principais significados são constituídos para além dela, em seu entorno, no processo de fazer a própria obra; em um terceiro momento há a ruptura com a idéia de trabalho fechado, ou objeto finalizado (cuja permanência é capaz de ser mantida em suportes propiciados como por exemplo a película, a fita magnética ou o cd/dvd digital).
No vídeo ao vivo, tudo que não é presentificado em tempo real é uma mera documentação da performance ocorrida. Diferentemente do videoclipe, em suas relações sígnicas de música-imagem, há nas performances de vídeo ao vivo o diálogo criativo com o conceito de improvisação, da obra em aberto, do efêmero e da impermanência do trabalho artístico.
Estes gestos desconstrutivos na arte são possíveis de serem reconhecidos tanto nas experiências contemporâneas do vídeo ao vivo como assim também o foram nas experiências germinais de Pollock com a pintura (nos anos de 1950) e do Fluxus com os happenings e ambientes instalativos (nos anos de 1960). A videoarte nasce inserida neste contexto de época dos anos de 1950 e 1960, como uma forma de subverter o sistema da caixa preta do vídeo e como uma forma de instaurar outros circuitos para as imagens e sons. Ë possível observar, hoje em dia, um novo modo insubmisso de reconfiguração das formas expressivas, calcado nos desvios e improvisos da linguagem audiovisual, por meio das recentes manifestações do vídeo ao vivo.
3. Cultura da sampleagem
Fruto das confluências do vídeo com a cena eletrônica, os trabalhos de vídeo ao vivo dizem respeito ao conjunto de formas expressivas trazidas pela cultura da sampleagem. Tal fenômeno ocorre na medida que os procedimentos criativos relacionados com estas práticas reprocessam significados a partir da recombinação e repetição (o looping) de imagens, bem como da ecologia visual, no sentido de reaproveitamento, de contextos imagéticos pré-existentes. Nesta direção, Lucas Bambozzi afirma que “estamos de fato na era do ready-made digital, ou, em outras palavras, o remix.” (Bambozzi, 2003: 69) Esta realidade remix implica observar, por exemplo, que do mesmo modo que os DJs manipulam o som, por meio de amostras musicais, fragmentos, ou samplers sonoros, os Vjs manipulam a imagem, por meio de amostras visuais, fragmentos ou samplers de imagem.
Os trabalhos dos VJs são compostos, em boa parte, por imagens reapropriadas lançadas no mundo pós-midiatizado, em convergência com as mais diferentes linguagens. Essas imagens podem ser fixas ou em movimento, “roubadas” ou não, utilizadas com ou sem direito autoral. De qualquer um desses modos, trata-se de imagens integrantes do acervo universal das redes de informação interligadas da contemporaneidade.
Para o VJ Spetto o vídeo ao vivo produz uma forma de documentário em tempo real. Para ele, este fenômeno é possível na medida que o VJ ao se apropriar e ao remixar as imagens, ele desconstrói e reordena seus elementos visuais sob o pretexto de uma exploração documental em torno a essas imagens. Spetto afirma que - por se tratar da reutilização de um banco de dados universal (extraído quer seja da mídia impressa, televisiva ou on-line) - o trabalho do VJ consiste em documentar o inconsciente coletivo imagético da nossa contemporaneidade.
4. As recombinações e reprocessamentos das performances de vídeo ao vivo
O trabalho dos Vjs diz respeito ao recolhimento e ao reprocessamento dos resíduos de uma sociedade capitalista pautada no consumo imagético, gerenciada por meio de bancos de dados distribuídos pelas mídias de massa, como a Internet e a televisão. Essas imagens são consideradas como imagens-mercadorias, commodities, extraídas de um acervo universal de imagens tecnológicas produzidas no mundo contemporâneo.
No universo sígnico da sampleagem no qual se insere o trabalho dos VJs, há o recurso criativo em que amostras de imagens, sons e textos são recombinados e reciclados. Desta maneira, emergem novas dinâmicas de produção e apresentação do trabalho audiovisual em tempo real, como as encontradas nos trabalhos desses performers de imagens. Estes trabalhos associam-se na história das idéias estéticas às noções introduzidas pelo:
“(...) recolhimento de vivências que Schwitters fazia em Merz, quando reunia o que não mais servia para ser utilizado por uma sociedade que, em última instância, se resume em consumir e não consumir. Schwitters formava uma teia de coisas vividas que repotencializava a arte.”( Cabo, 2001: 101)
Seguindo uma lógica do imprevisto, do acaso e da aleatoriedade, já preconizados nas artes visuais tanto pelo dadaísmo de Schwitters como pelo Fluxus, na literatura por Mallarmé e na música tanto pelos improvisos do jazz quanto por John Cage e Pierre Boulez, há no vídeo ao vivo a manipulação e reordenação das imagens em tempo real a partir da seleção de um banco de dados pré-existente (formado por elementos apropriados da cena midiática, na maioria dos casos) ou não.
Esse processo ocorre de forma conjunta à sincronia com a música e à interação do público com o ambiente sensório, ou com a pista de dança. É no grau de complexidade com que os mais variados elementos são associados que é possível distinguir as qualidades existentes entre um trabalho criativo e outro. Há também nestas obras a sensação participativa, do corpo estar imerso no ambiente, de perceber que as variações entre o ritmo do som, das imagens e da vibração do corpo fazem os sentidos serem construídos de modo conjunto. Como em uma performance, cada recombinação é única, não existindo um padrão ou uma estrutura fixa de manipulação entre os elementos constitutivos do trabalho.
5. As experiências dos VJs
As primeiras iniciativas em torno à produção de vídeo ao vivo no Brasil28 ocorrem em 1999 por iniciativa de Alexis Anastasiou, mais conhecido como VJ Alexis29. Ele empreende neste ano em Brasília, em meio a uma festa undergroove-underground, a primeira VJ performance brasileira. Para tanto, Anastasiou foi influenciado por um show do Kraftwerk, que assistiu, no mesmo ano, no Festival Free Jazz em São Paulo. Neste show, Anastasiou ficou profundamente tocado com a relação entre as imagens e a música proporcionadas pelo grupo alemão.
O Kraftwerk possui uma importância histórica na disseminação da cultura “technopop”. Fruto de suas experiências pioneiras com o rock progressivo no final dos anos de 1960, o grupo constitui a partir dos anos de 1970 todo um repertório de experimentação baseado na criação de seus próprios instrumentos e recursos, como “osciladores de freqüências, filtros sonoros e ruídos da natureza retrabalhados eletronicamente”. O elemento principal de sua abordagem diz respeito aos relacionamentos e à simbiose entre homem e máquina. Para tanto, o Kraftwerk cria uma verdadeira cena imersiva-sinestésica-eletrônica em suas apresentações ao vivo.
Como todo o histórico da videoarte, desde as experiências de Nam June Paik nos anos de 1950-1960-1970 de sintetizar imagens como sons, não é difícil supor que mais uma manifestação expressiva do vídeo nasce em torno às experiências com a música eletrônica. Neste caso, é na direção desta mesma vivência imersiva-sinestésica-eletrônica, encontrada no trabalho do Kraftwerk, que o VJ Alexis inicia em 1999, editando de forma bem precária, de vídeo VHS para vídeo VHS, a sua trajetória em torno à integração entre rítmo sonoro e visual e em torno à integração do vídeo com a pista de dança.
As experiências geradas no campo da música visual por Alexis Anastassiou, a partir do ano de 1999, nas performances de vídeo ao vivo, são disseminadas no contexto brasileiro ao longo da virada para o século 21. Do decorrer dos anos de 2000 e 2001 até a explosão da cultura dos VJs no Brasil, no ano de 2002, surgem uma série de outros criadores, provenientes ou não do ambiente criativo videográfico, que passam a desenvolver trabalhos neste campo. Entre eles, destacam-se os VJs Luiz Duva, Palumbo e Spetto32, bem como os grupos Embolex, Bijari33, Feitoamãos/FAC, Azóia, Nudesordem e Apavoramento.
Neste contexto, vale ressaltar as imersivas e radicais experiências das narrativas performáticas de Luiz Duva, em que o artista gera um ambiente que pode ser considerado como similar à estrutura sensorial pensada por Helio Oiticica em seus Penetráveis.
Luiz Duva utiliza o live image em uma perspectiva bastante experimental e pessoal. Em sua trajetória, iniciada na segunda metade dos anos de 1980, há a experiência com ficções e videoinstalações. De lá para cá seu trabalhou migrou entre narrar de forma experimental uma história para os ambientes vivenciais das videoinstalações e do vídeo ao vivo. Recentemente Duva apresentou Desconstruindo Marca Registrada: Letícia Parente (2003), em que ele interfere na videoperformance Marca Registrada (1974) de Letícia Parente, trabalho considerado exponencial da videoarte brasileira. Nesta performance de imagem ao vivo, por meio da transmissão simultânea em três telas, Duva desconstrói as imagens existentes no vídeo de Parente. Ao som do grupo LCD, ele empreende um tipo de ranhura, ou scratch, no time line da edição ao vivo. Para tanto, Duva inicialmente sampleia uma parte do vídeo original de Parente em que há um defeito (no caso um drop-out na imagem) e o reinsere sobre um novo contexto, de ordem desconstrutiva, em seu trabalho. Duva realizou também as performances PVC e A mulher e seu marido bife (em 2001, no 13º Videobrasil) e Vermelho sangue (em 2002, no Red Bull Live Images, em São Paulo) entre outras, como a desconstrução de pequenos movimentos e ações, procurando muitas vezes equiparar o vídeo à pintura. Interessa a Duva, nestes trabalhos, associar o resultado desses pequenos movimentos com novos resultados obtidos em torno à cor e à textura do vídeo. Os trabalhos de Duva são videoperformances criadas especialmente para ambientes sensórios, que permitem que o público possa interagir de forma colaborativa por todo o ambiente. Como Duva descreve, seu trabalho constitui-se de uma rede de relações entre imagens e sons, manipulados ao vivo e em tempo real. Em 2002, na Mostra Sesc de Artes Ares & Pensares, em São Paulo, ele apresenta Vermelho sangue em sincronia com os sons eletrônicos e intervenções também produzidas ao vivo pelo instrumento Theremin34 do músico Wilson Sukorski. 34 De acordo com Lucas Bambozzi, o Theremin é um instrumento criado em 1919 por Leon Theremin (Lev Thermen), que lê sinais provocados pela aproximação da mão ou do corpo. (Bambozzi, 2003: 73)

Para uma melhor compreensão acerca das experiências introdutórias e das contribuições do meio videográfico no campo da arte, procurar em “Experiências sensórias da contemporaneidade” (Mello, 2003c).
Para maiores esclarecimentos, buscar nos sites dos próprios artistas: Angelo Palumbo (http://www.artgaragem.com.br/clip/paginas/palumbo.htm); Feitoamãos/F.A.Q. – André Amparo, Chico de Paula, Cláudio Santos, Lucas Bambozzi, Marcelo Braga, Ronaldo Gino, Rodrigo Minelli (www.feitoamaos.com.br); Live Images – Luiz Duva (http://www.liveimages.cjb.net/); Lucas Bambozzi (http://comum.com/diphusa/); Visual Radio – Spetto (http://www.visualradio.com.br/).
Formado em sua maioria por arquitetos, é um centro de criação de artes visuais e multimídia sediado em São Paulo e integrado por Giuliano Scandiuzzi, Flávio Araújo, Rodrigo Araújo, Gustavo Godoy, entre outros. Para maiores informações sobre o grupo, procurar em www.bijari.com.br.
Um exemplo também bastante expressivo de desconstrução e reordenação de imagens diz respeito ao conjunto iconográfico processado por Spetto (Ricardo Lara) em suas performances de designer visual, visual-jockey, ou VJ. Seu trabalho origina-se desde os anos de 1990 da elaboração de interfaces gráficas e da programação de dados.
Spetto cria uma gramática visual cujos temas e ícones são recombinados de acordo com a intenção de cada uma das narrativas não-lineares por ele processadas em um computador PC. Para tanto, ele gerou um software livre, de acesso gratuito na Internet, o VR 502, que disponibiliza os dados imagéticos como um conjunto de 26 layers, ou camadas de informação, cada uma delas correspondente a uma letra do teclado. A partir daí, ele edita em tempo real, com o ritmo da mão, essas imagens. Os 26 layers de imagem correspondem às 26 teclas, de A a Z. Em cada uma delas, há uma gama de cenas que são continuadamente repetidas e recombinadas.
Spetto tem um tipo de trabalho baseado nas imagens geradas em seu software VRStudio 5 e nos sons, na grande maioria das vezes, do DJ Fernando Maylinch. Ele realiza um trabalho de deconstrução-reconstrução das imagens com o intuito de mostrar que ícones gráficos podem criar sentidos diversos quando recombinados, sugerindo novas histórias e interpretações. Este é o caso de trabalhos que empreende como Fui ao Iraque para pedir ao Aladdin a lâmpada mágica emprestada e fazer três pedidos: um vinil, uma pickup e uma jaca. Em seu software VRStudio 5, o VJ Spetto busca “formas de substituir o teclado do computador por instrumentos musicais utilizando interfaces comandadas por sinais midi, a fim de ‘tocar’ as imagens, afastando-se um pouco do referencial do computador e do teclado qwert.” (Bambozzi, 2003: 73)
Para Spetto, a pista de dança é uma entre as várias possibilidades de articulação do trabalho do VJ. Nesta entrada do século 21, Spetto vem produzindo software para a interação do espectador com dados videográficos manipulados de forma aleatória e ao vivo. Desta forma, ele admite estar criando uma nova forma de produção de TV, na medida que acredita que o futuro da televisão digital diz respeito às possibilidades interativas que cada espectador-interator poderá ter de construir o seu próprio programa televisivo.
Nestes novos parâmetros de produção do vídeo ao vivo, interessa menos para Spetto os conteúdos neles produzidos e interessa mais os novos sentidos gerados - a partir desta realidade - do homem em suas interações maquínicas. Spetto configura essa modalidade de vídeo interativo a partir das experiências de utilização doméstica nos anos de 1980 do monitor de TV como tela para os videogames. Ao mudar o esquema de linearidade conhecido hoje das narrativas de vídeo tradicional, Spetto acredita que o papel do VJ se transforma automaticamente no papel do próprio diretor televisivo.
O grupo mineiro Feitoamãos, que também utiliza o nome FAQ, é um coletivo de artistas constituído atualmente por André Amparo, Cláudio Santos, Lucas Bambozzi, Marcelo Braga, Rodrigo Minelli, e Ronaldo Gino. Em sua constituição inicial teve acrescido também a presença de Chico De Paula. O grupo tem se especializado em “apresentações em que a narrativa, a construção de um ambiente imersivo e a performance cênico-musical são essenciais para o conceito do trabalho, sendo a manipulação de imagens apenas um dos elementos que se somam ao processo de execução ao vivo.” (Bambozzi, 2003: 66).
Integrante do Feitoamãos/FAQ, Rodrigo Minelli conceitua que o vídeo ao vivo é para ele uma nova experiência estética, que responde às novas necessidades de representação da contemporaneidade. Como um novo cinema, tanto quanto o cinema do início (o cinema mudo, que contava com o acompanhamento musical ao lado da tela de projeção). De acordo com Minelli, esta forma de cinema expandido busca, por meio da (re)montagem de imagens, dar conta da simultaneidade e da instantaneidade que a narrativa tradicional do cinema não é capaz de oferecer.
O Feitoamãos cria em 2001 a sua primeira intervenção de vídeo ao vivo, que consistiu numa performance - baseada nas experiências do cineasta russo Dziga Vertov e o seu O
35 O depoimento do artista e pesquisador Rodrigo Minelli acerca de trabalhos do grupo mineiro Feitoamãos foi extraído em 6/12/02 de debate on-line coordenado por André Brasil na Internet.
homem da câmera (1929) – para a abertura do Festival Internacional de Curtas-Metragens de BH.
Para Lucas Bambozzi, integrante do Feitoamãos/FAQ, o filme O homem da câmera é até hoje “a maior referência em termos de tratamento de imagem segundo uma concepção musical”. (Bambozzi, 2003: 63) Para ele, há neste filme uma “fina sintonia com as linguagens do universo digital, que se utiliza de layers e sugere o hipertexto, o fragmento, a repetição, a reciclagem e a simultaneidade” (Bambozzi, 2003: 63) Nesta proposta de (re)(des)montar Dziga Vertov em 2001 o Feitoamãos apresenta um misto de imagem em grandes dimensões, música e vídeo, tocados na forma de improviso e processados em tempo real.
Também em 2001 o coletivo Feitoamãos realiza uma série de performances, como em uma das raves do Festival de Novas Tendências Musicais (Eletronika), com quatro computadores e duas mesas de vídeo conectadas a um telão, em que 24 pessoas trabalharam durante três dias. Em 2002, em evento promovido pelo Itaú Cultural em São Paulo, sob curadoria de Roberto Moreira Cruz, o grupo apresenta Monstruário Ilustrado, em que convidam uma série de outros artistas, como Eder Santos, Inês Cardoso, Patrícia Moran e Wilson Sukorski, com o objetivo de “criar um ambiente de imersão, utilizando recursos de cenografia, imagens, interferências no ambiente, de sons samplers, música ao vivo e ambientação”, conforme relatam em seu site36.
O grupo Feitoamãos/FAQ amplia fronteiras ao lidar de forma coletiva na produção contemporânea e atuar na intersecção de proposições artísticas do meio videográfico com o espaço cênico e com a Internet. Em todo esse amplo conjunto de trabalhos, é interessante observar que se trata de artistas com relevantes vivências anteriores com o vídeo (quer seja no campo da videoarte, documentário, ficção ou videoinstalação) e que deslocam seus gestos criativos para novas experiências em torno do tempo real, da projeção em múltiplas telas e dos ambientes sensoriais, como meio de intervir numa contemporaneidade que não se apresenta de forma linear, que não permite a contemplação estática e que apela a todos os sentidos. Conforme conclui o próprio Minelli, o grupo Feitoamãos/FAQ empreende no vídeo novos caminhos para o trabalho coletivo, bem como a discussão dos desígnios atuais acerca dos regimes de autoria.

Para uma maior compreensão da abrangência de seus trabalhos, procurar em www.feitoamaos.com.br.

6. Vídeo ao vivo: novas dinâmicas de se processar a arte
No contexto de transformações introduzidas pela nova ordem visual dos VJs encontra-se o germe de mudanças para um novo sistema de circulação da imagem. Para os Vjs, o que está em jogo é a busca de múltiplas dinâmicas de se processar a arte e de novos mecanismos de interação do espectador com a obra.
Ao incluírem a participação do público como parte inerente à construção dos sentidos, a linguagem do tempo real e o tempo ao vivo em suas obras, o trabalho dos VJs passa a se caracterizar muito mais pela idéia de uma arte não-objetual, transitória, impermanente, uma arte da vida, que inclui o espectador na trama de significados por ela gerados, do que uma arte relacionada a um produto específico (como um videoclipe), ao resultado final de uma obra ou à atitude contemplativa do espectador.
É possível verificar aqui a quebra da idéia do vídeo como uma arte fixa, unidirecional, propícia ao acabamento e um direcionamento para um discurso estético livre da dependência do objeto, considerado efêmero e descontínuo, que rompe com o próprio ato da contemplação e o conceito tradicional de autoria, inserindo aí as noções de colagem, apropriação e sampling de imagens e provocando a mistura entre a arte e a vida em sua elaboração.
Como um cinema de múltiplas telas, em que várias imagens são projetadas ao mesmo tempo, em rítmos diversos, trata-se de reconhecer nestas vivências audiovisuais uma arte da aleatoriedade e da recombinação. Tanto quanto na montagem polifônica de Eisenstein como no cinema de associação de Vertov, há no vídeo ao vivo a necessidade de elaboração de um processo de analogia entre uma e outra imagem, deixando a cargo do público a construção final dos sentidos do trabalho.
Como explica o VJ Spetto37, de acordo com os conceitos transmitidos pelo arquiteto italiano Bruno Zevi, a experiência da obra nestas performances sinestésicas só se concretiza na medida que o público encontra-se imerso dentro da arquitetura do ambiente e na capacidade dele – o público - perceber o todo sensório.
As performances de vídeo ao vivo redefinem criticamente a produção videográfica, na medida que inserem a dimensão estética do ambiente, do corpo inserido na produção de sentidos e do inacabado no vídeo. Elas potencializam de forma inusual os recursos de edição não-linear provenientes do meio digital e complexificam a experiência vivida na migração intermitente entre códigos e símbolos.
performances de vídeo ao vivo desautomatizam, dessa maneira, o ato de representar com o meio videográfico, inserindo o corpo em novas dimensões relacionadas às experiências estéticas multissensórias.
Referências bibliográficas
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BASTOS, Marcus (2002). Samplertropofagia: das relações entre literatura e tecnologia. São Paulo: PUC-SP. [Palestra proferida em 25/11/02 no Seminário Poéticas Digitais e o Corpo Biocibernático]
BASUALDO, Carlos (org.) (2001). Hélio Oiticica: Quasi-cinemas. Columbus, New York e Cologne: Wexner Center for the Arts/ New Museum of Contemporary Art/ Kolnischer Kunstverein.
37 O VJ Spetto, ou Ricardo Lara, ofereceu este depoimento no decorrer do Workshop Live Images, realizado em maio de 2003 em Belo Horizonte (como atividade integrante do Fórum Mídias Expandidias).
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Christine Mello
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CABO, Sheila (2001). In: Ricardo Basbaum (org). Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, pp. 98-110.
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