sábado, 18 de julho de 2009

Re - Combo (entrevista)

Uma das grandes potencialidades da internet ainda é a reconfiguração do conceito de autoria, não só do ponto de vista jurídico, no que se refere à propriedade intelectual, mas também cultural, no que tange a novos repertórios de criação.

Dia a dia surgem novos coletivos que merecem esse nome não porque pretendem ser mais contemporâneos que os grupos, mas por se articularem de formas distintas, sem pressupor hierarquia de funções, centralidade administrativa ou metas únicas.

A onda, lançada com o Critical Art Ensemble ainda no século passado (hehehe), em meados dos anos 90, pegou e hoje aponta para a disseminação de parâmetros alternativos de produção e distribuição cultural, como os que norteiam o brasileiríssimo Re:combo.

Coletivo formado por músicos, artistas plásticos, engenheiros de software, DJs, professores e acadêmicos, desenvolve projetos de arte digital e música de forma descentralizada e colaborativa.

As atividades se desenrolam a partir de cidades brasileiras e de outros países, recebendo imagens e sons via web e visam, na teoria e na prática, operar um discurso crítico sobre a internet comercial e a estrutura da indústria cultural.

Os conceitos ideológicos do projeto são o princípio de recombinação aliado à estrutura funcional e estética dos Combos de Jazz e à intertextualidade, explica o pernambucano h.d. mabuse, um dos pioneiros do Re:combo.

Envolvido até o último fio de cabelo na missão “call for noise” (chamada para o barulho) que resultará em uma apresentação do coletivo no Itaú Cultural, em outubro, dando início às atividades dos contemplados pelo prêmio Transmídia, mabuse conversou com Trópico a respeito do Re:combo, do projeto “call for noise” e de novas condições de criação digital que prescindem da noção de propriedade intelectual.


Como você definiria o projeto Re:combo?

mabuse: Re:combo é um projeto multimídia de produção colaborativa audiovisual. Nós estamos interessados na idéia de uma performance pública que funcione como um grande fluxo de sons, imagens, loops e vídeos, livre das burocracias do mundo pop de set lists, mapas de palco e limites de tempo.

Re:combo acredita que a tradicional fórmula de "artistas no palco / público na platéia" não se encaixa nos novos caminhos da música / arte eletrônica. É por isso que pode se dizer que é também uma rádio. Assim como no rádio, no Re:combo as ondas e fluxos de sons extrapolam o limite físico, o território ocupado pela apresentação.

Qual é o objetivo do Re:combo?

mabuse: Desde outubro de 2001 o Re:combo vem discutindo, através da música, os caminhos e definições da propriedade intelectual, defendendo sempre a generosidade intelectual em detrimento dessa visão antipática de propriedade.

Outro motor do projeto é conseguir dar um uso adequado à internet. Com a entrada da web comercial perdeu-se, praticamente, a verdadeira função da rede: o trabalho colaborativo à distância.

Com o Re:combo, pessoas espalhadas pelo mundo juntam-se ao projeto, pela internet, e interferem na música que será apresentada “in loco”, refinando assim a idéia de trabalho colaborativo e descentralizado.

Em que medida ela é uma crítica à indústria fonográfica?

mabuse: A crítica maior é relativa ao conceito de propriedade intelectual, que é o mal maior que leva à indústria fonográfica e sua relação absurda com o artistas. Como está publicado no primeiro manifesto: "Tendo consciência que o direito autoral foi criado pelos editores de livros durante a revolução trazida por Gutenberg, o Re:combo entende que editores de livros, música e afins vêm enganando gerações e mais gerações de autores, falando do direito inalienável pelo usufruto da venda de suas peças ‘únicas’ (com uma módica parcela sendo enviada para os cofres das empresa, claro)".

Quantas pessoas participam do coletivo?

mabuse: Hoje, o Re:combo conta com mais de 35 pessoas, entre músicos, artistas plásticos, designers, professores de história, engenheiros de software, geólogos, DJs e profissionais de vídeo.

Todos os projetos desenvolvidos pelo coletivo são passados e disponibilizados pela internet para quem estiver com mais oportunidade/vontade de executar a tarefa. “Células” de áudio e vídeo produzem material ao mesmo tempo em cidades tão distantes quanto João Pessoa, São Paulo, Recife, Caruaru e Belo Horizonte.

Depois do “call for noise” e do recebimento dos arquivos, o que é feito até o momento da transmissão em um lugar específico?

mabuse: Esses arquivos são incorporados no software de composição e acionados no evento e através da web. Esse software está sendo desenvolvido por nós (pela “célula” de engenheiros de software e designers de interface ), a partir Director (produto da Macromedia), e é um aplicativo web. Ele funciona de uma forma parecida com um software seqüenciador, os arquivos do “call for noise” serão "carregados" no software e qualquer pessoa que entrar no site poderá compor e criar “seus” samples.

O resultado das composições é veiculado na web, através do site, e nas apresentações físicas com alguns dos membros do Re:combo.

Qual a relação do Re:combo com a filosofia inicial do Napster?

mabuse: Para o Re:combo o fenômeno P2P (pessoa a pessoa) é importante como mais uma ferramenta de divulgação da música. Durante a Copa do Mundo, por exemplo, MC5 ficava monitorando, de seu computador em Belo Horizonte, o número de pessoas que fazia download da música "Delírio Ufanista (Brasil Dub Gol)", criação disponível no site do coletivo. É um tipo de relação com o público que não era sequer imaginável para os artistas, antes da onda Napster...

Os pioneiros do coletivo estiveram diretamente envolvidos com o movimento manguebeat. O que Re:combo herdou do manguebeat?

mabuse: O gosto pela mistura (de ritmos, conceitos, estéticas...), o apreço pela cultura popular de todo Brasil e a intimidade com as tecnologias do low-tech à ciência mais abstrata.

Alguém já quis processar vocês?

mabuse: Re:combo não utiliza samples que não sejam produzidos por nós ou declaradamente liberados para o uso. A discussão sobre "samplers/pirataria" é vista pelo coletivo como uma discussão estéril. Existem temas mais importantes para debatermos.

O autor morreu?

mabuse: Não :). O que vemos é o ressurgimento do autor generoso, o Homero que foi vários homens e mulheres. O que vai para o caminho da morte certa é o editor como atravessador e parasita do autor, os direitos autorais ou copyrights (direitos de cópia) que funcionam hoje como uma força restritiva ao processo de criação intelectual.

Em síntese, somos a favor do copyleft (deixar copiar) em prol da diversidade de produção.

Publicado originalmente na Trópico (www.uol.com.br/tropico/).

Giselle Beiguelman é professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora de "A República de Hemingway" (Perspectiva), entre outros. Desde 1998 tem um estúdio de criação digital (desvirtual - www.desvirtual.com) onde são desenvolvidos seus projetos, como "O Livro Depois do Livro", "Content=No Cache" e "Wopart". É editora da seção "Novo Mundo", de Trópico.

Fonte: Re:combo (www.recombo.art.br).

Imagem: Wired (www.wired.com).

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